sexta-feira, 26 de abril de 2013

FLASHES DO COTIDIANO

Jô Drumond
Na lufa-lufa diária dos grandes centros urbanos, entre milhares de cenas presenciadas, algumas ficam retidas em nossas memórias. Lembro-me nitidamente de duas delas, uma cômica e outra dramática:

Certo dia, há mais de três décadas, pouco antes das oito da manhã, na Av. Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, deparei com uma pequena aglomeração em frente ao edifício Sulacap. A cena era absolutamente inusitada. Uma charmosa mocinha de minissaia justa tentava trocar o pneu de seu fusca. Toda embaraçada, tentava a troca com uma das mãos, e com a outra, puxava a saia para baixo, com o intento de se proteger dos curiosos. Esforço inútil.  Por um lado, uma só mão era insuficiente para a troca; por outro, o tecido não cedia. Dentro de tamanho desconforto, procurava, com modos recatados, encontrar a melhor maneira de se abaixar sem mostrar os fundilhos. A cena era tão engraçada, que ninguém se oferecia para ajudá-la. Todos, sobretudo os marmanjos, com ares zombeteiros, preferiam assistir ao embaraço da moça, sem a mínima menção de ajuda. Não pude ajudá-la. Estava em cima da hora. Segui meu caminho com pena da garota e curiosa pelo desfecho da cena.

Num passado mais recente, estando eu a pé, num movimentado cruzamento da Av. Nossa Senhora da Penha, em Vitória (ES), gritos de desespero atraíram minha atenção. De braços abertos, uma jovem tentava parar os carros, correndo de um lado para outro, feito barata tonta. Bradava aos quatro ventos: – Socorro! Ajudem-me! Meu filho está morrendo! Socorro! Um médico! Ajudem-me! Na calçada, um homem fazia respiração boca a boca num bebê desfalecido, de cerca de um ano. De pé, com a criança nos braços, prestava-lhe socorro e olhava inquietamente para os lados à procura de ajuda. Os carros iam parando, o povo se aglomerando, mas nada de médico, nem de ajuda eficiente. A respiração boca a boca continuava. A mãe aproximava-se às vezes para ver se ainda existia uma chama de vida na criança e voltava à encenação anterior. Nenhuma atriz, por mais competente que fosse, conseguiria representar tão bem aquele papel. O desespero estampava-se em seu rosto. De tanto gritar a boca espumava e um líquido viscoso escorria pelos cantos. Nos olhos e no semblante via-se o pavor da morte de um filho, que deve ser maior que o da própria morte. Ouvimos uma sirene não muito distante. Um rapaz, que a tudo assistia, saiu desabalado em direção ao som, na esperança de conseguir uma ambulância. Mantive-me impotente, fazendo parte daquela plateia macabra. Percebi que o bebê começou a piscar os olhinhos e já respirava por si. Respirei aliviada. Uma moça assentou-se no chão, na posição de lótus (Yoga) e deitou a criança no colo. No meio da rua, a cena continuava. Trânsito parado, gritos de socorro, aglomeração cada vez mais intensa, guarda de trânsito se aproximando...  A mãe percebeu que o bebê não estava mais nos braços do rapaz. Abriu um carro que estava parado no meio da avenida, pegou nos braços uma garotinha de cerca de três anos e se dirigiu ao local gritando: ─ Meu filho morreu? Ai! Meu Deus! Ele está morto? A menina, assustada, chorava nos braços da mãe, sem nada entender. ─ Não meu amor! Ele não morreu! Está voltando! ─ respondeu o pretenso pai da criança.
Olhei o relógio: eram 15:10. Uma consulta médica agendada para as 15:15 exigia meu imediato afastamento do local.  Não pude presenciar o desfecho da cena. Segui meu rumo, meio desnorteada, com olhos inundados e pranto sufocado. Aquela imagem não me saía da memória. Via, a todo o momento, num rosto transfigurado, o pavor da iminente perda de um filho.
Partindo do princípio de que o mundo é um imenso palco onde se encena a vida, no dia a dia todos somos, ao mesmo tempo, espectadores e personagens: cada um observa o que se passa em seu entorno e representa, na medida do possível, a cena que lhe é legada.

*Jô Drumond é membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras)
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES)