quarta-feira, 16 de março de 2016

BRIQUITANDO COM PALAVRAS

 *Jõ Drumond
  
Como filha temporã, a grande diferença de idade entre mim e meu genitor deu-me o privilégio de tê-lo como misto de pai e avô. A defasagem de gerações era bem nítida em nosso registro linguístico.

Ele dizia “mentecapto” em vez de “louco”; “estorvar” em vez de “incomodar”; “estúrdio” em vez de “esquisito”; “chaleirar”, em vez de “bajular”, e assim por diante. 

Nascido e criado no sertão de Minas Gerais, no final do século XIX, usava um vocabulário rico, porém arcaico e démodé. Eu, nascida na segunda metade do século XX, utilizei, desde a juventude, um vocabulário contemporâneo e citadino. Após nossa mudança para a capital mineira, ele fez questão de manter seu registro linguístico, mesmo percebendo os olhares zombeteiros dos interlocutores. Às vezes, criavam-se situações cômicas. Certo dia ele solicitou minha ajuda para escolher um par de sapatos, numa loja chamada Praça 7 Calçados, situada no centro de Belo Horizonte. Ao entrar, abordou uma jovem vendedora, da seguinte maneira:
- Boas tardes, senhorita! Gostaria de adquirir um calçado singelo, porém de cabedal bom. Mas não carece ser coisa cara!

A vendedora lançou-me um olhar inquiridor, como se estivesse pedindo socorro. Certamente desconhecia os termos “singelo”, “cabedal” e “carecer”. Tive então que lhe traduzir o pedido para um vocabulário usual, ou seja, troquei o filet mignon pelo feijão com arroz.

Quando morávamos Belo Horizonte, com certa frequência, eu parafraseava prazerosamente sua fala, para auxiliar a compreensão de amigos e de colegas. Ele dizia, por exemplo: “esse trancelim custou uma tutaméia”, para se referir ao baixo preço de um cordão de ouro. Ou então, “Esse mandalete é muito enredeiro; vai acabar provocando uma ingrisia entre amigos”, para dizer que ou menino de recados era muito mexeriqueiro e que ia acabar provocando uma contenda entre amigos.

Certa manhã, ao deparar com minha irmã ainda despenteada, disse-lhe: “deixe de ser desmazelada, menina! pegue umas ramonas e prenda essa gaforina”, ou seja, deixe de ser desleixada! pegue uns grampos e prenda esses cabelos desgrenhados. Certa vez, perguntado se estava triste, respondeu que estava um pouco chateado por ter levado prejuízo, num pequeno negócio, com um mercador ambulante esperto e inteligente. Se me lembro bem, expressou-se mais ou menos assim: – Estou meio jururu, pois, levei manta numa catira com um danisco dum mascate ladino.

O linguajar do sertão (faixa interiorana, de Minas ao Nordeste), durante séculos, manteve o uso de certos termos do vernáculo, totalmente desconhecidos nos centros urbanos. A carência de meios de comunicação e de estradas de rodagem dificultava o contato com as cidades, local onde a renovação linguística é mais acelerada. Mesmo nos dias atuais, no limiar do terceiro milênio, na era da propalada globalização, apesar da eletrificação rural e do boom midiático, certos rincões mantêm um linguajar peculiar, dificilmente decifrável, sobretudo pelos jovens citadinos.

Quando visito o interior de Minas, acompanhada de alguém de outro Estado ou até mesmo da capital mineira, acabo tendo que atuar como tradutora, ao parafrasear certas expressões idiomáticas.

Quem lê Guimarães Rosa, percebe que sua prosa é salpicada de termos inusitados como aqueles usados por meus antepassados. Em verdade, nem sempre se trata de regionalismos. Muitas vezes são arcaísmos usados ainda hoje pelos anciões. Ao ler Guimarães Rosa volto às raízes e reencontro, a todo instante, o léxico outrora habitual aos meus ouvidos. Destarte, a leitura de sua obra tem, para mim, sabor de infância. Carrego na memória termos e expressões usuais daquele tempo e espaço, abolidos de meu vocabulário desde a mocidade, quando passei a viver em grandes centros urbanos e a utilizar um vocabulário mais condizente com a nova realidade.


Daí a razão pela qual me dediquei, apaixonadamente, aos estudos da obra roseana. No período de meu doutoramento, na PUC/SP, durante a abordagem da produção literária desse autor, por especialistas, em congressos ou em grupos de estudos avançados, percebia que minha compreensão às vezes superava à dos demais pelo simples fato de estar mais familiarizada com tal matriz estilística. Podia apreender mais facilmente as respectivas corruptelas ou neologismos dela oriundos.

Por exemplo, numa abordagem do conto “Nós, os temulentos”, publicado no livro “Tutameia”, um bêbado ao se ver seminu, diante do espelho, pensa que se trata de outra pessoa, e a ataca: “Sai, ou eu te massacro! E avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe [...] o Chico se arrependeu. E com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de  si mesmo.”
Perguntei ao professor e aos colegas o que tinham entendido por “E, com isso lançou”. Todos foram unânimes em dizer, erroneamente, que ele havia se jogado sobre a cama. No sertão de Minas, “lançar”, nesse contexto, significa “vomitar”.

Enganam-se os que acreditam que Rosa reproduz a fala sertaneja. Ele explora certas peculiaridades orais para seu fazer literário, mas cria uma linguagem estilizada, mais ideal do que real.
Alguns de meus leitores dizem que, às vezes, o léxico utilizado em meus “causos mineiros” os remete à linguagem roseana. Sinto-me extremamente honrada com isso. Como diriam os franceses, ça va de soi! Rosa e eu somos oriundos do sertão mineiro e herdamos de nossos ancestrais o mesmo comprazimento de contar causos et de briquitar com palavras.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)