terça-feira, 22 de março de 2016

O TERROR DOS CALOTEIROS

* Jô Drumond

Em meados do século XX, não havia cobrador melhor que Zé Bernardim, na zona rural da Charneca (MG). Se porventura um fazendeiro não conseguisse receber uma dívida, acionava seus préstimos. Bernardim tinha um modo peculiar de cobrar dívidas dos maus pagadores. Gabava-se de nunca voltar para casa sem receber o devido montante. Mineiro matreiro, astuto e sem instrução, apreendeu toda sua argúcia na escola da vida. Era educado, amigável, cortês e tranquilo. Com fala macia e melindrosa, sempre atingia seu objetivo sem desagradar nem magoar o devedor.


Certa vez foi à fazenda Rio Comprido, cobrar a dívida da venda de uma boiada. Fora contratado por Jacintho, Bento que ouvira falar de seu infalível método de persuasão. Sr. Bento temia não receber a vultosa dívida de seu aparentado João Gabão, que lhe comprara trezentas cabeças de gado. Comentava-se, à boca pequena, que grande parte da boiada fora fulminada por peste bovina que assolara a região. Assim sendo, Jacintho sentia-se constrangido em cobrar a malfadada dívida a seu ex-amigo e atual devedor.

Zé Bernardim seria sua única salvação. Corria de boca em boca que seus métodos eram mais eficazes do que qualquer cobrança judicial ou qualquer ameaça policial. Os meios legais podiam provocar alguma eficácia junto aos devedores, mas eram muito morosos e, às vezes, ineficazes. A presença, ou melhor, a persistência de Zé Bernardim junto ao inadimplente atingia diretamente os sentidos, sobretudo a audição, o olfato e a visão.

Ao Chegar à fazenda Rio Comprido, cumprimentou alegremente a família de João Gabão, como se fosse uma visita de cortesia. Instalou-se confortavelmente num canapé da sala de visitas e proseou longamente com as pessoas presentes. Almoçou com os anfitriões, sempre sorridente e cheio de causos interessantes. Todos apreciavam sua presença, exceto o chefe da família que, conhecedor de sua fama, estranhava aquela aparição inesperada. Lá pelas tantas, após o terceiro cafezinho, encontrando-se a sós com o pretenso caloteiro, abordou com brandura o assunto que o levara àquela fazenda.

–Sabe, Sinhô João, muito apreceio sua prosa, e é de gosto que aqui estô. De modos que o senhor sabe como a vida é... cheia de subidas e descidas. Pois bem, de maneiras que, meu cumpade Jacintho, estando desendinheirado, numa situação de grande arrocho,  ficaria muito sastifeito com o acerto da pendência da boiada. O sinhô sabe cumo ele é; pessoa de bem, home mui cordato. De maneiras que nunca me serviria de mandalete, num fora o grande aperto financêro do cumpade. De modos que aqui vim e aqui estô, sem nenhuma pressa. O sinhô num precisa se apertá. Eu espero o tempo que precisá. Só que num posso vortá de mãos vazia, sem a encomenda. Seria grande desfeita pra meu cumpade, a quem devo muita gratidão. De modos que, quando o sinhô fizé o acerto, eu vô s’imbora, mas não carece de tê pressa.

Para o matuto, a repetição das conjunções consecutivas “de modo que” e “de maneira que” tinha a função de tornar o discurso mais formal. Zé Bernardim sorveu outra golada de café, mudou de assunto e foi ficando, cada vez mais à vontade, sem nenhuma menção de partida. Sentou-se à mesa, para o jantar, aceitou pouso, tomou leite ao pé da vaca na manhã seguinte, fez caminhada pelos pastos, apreciou a paisagem, proseou com todos, sempre tranquilo e alegre, com fala mansa e pausada. Almoçou novamente com a família, jantou, dormiu, passeou, proseou e por ali foi ficando, sem repetir o motivo que o levara àquela fazenda. Sua presença incomodava cada vez mais devido a uma sutileza de seu estratagema de cobrança. Nunca se banhava, nem se trocava. Com a roupa do corpo suja e fétida, o comensal indesejável postava-se à mesa todos os dias como se nada estivesse acontecendo. Para caprichar no visual, em suas andanças matinais, tirava a roupa, esfregava-a nos cupinzeiros, para aumentar a sujeira. Os odores corporais, cada vez mais intensos, somados à figura nauseabunda, causavam nojo a todos. As poltronas usadas pelo convidado porcalhão tornavam-se inutilizáveis. 


A família não podia expulsá-lo dali, nem dispunha de fundos para quitar a dívida. Com o passar do tempo, a situação tornou-se insustentável. Como justificariam a situação junto aos amigos que porventura viessem visitá-los? Dona Maroca e os filhos, cansados de reclamar da indesejável presença, ameaçavam abandonar a fazenda.  Seu João temia o constrangimento de ser rotulado de caloteiro, e de se tornar alvo da maledicência alheia. Além do mais, sentia-se no dever de fazer sala àquela educada e repugnante figura. Na iminência de perder a família e de ficar a sós com Zé Bernardim no casarão, acabou decidindo ir à cidade levantar fundos para se livrar daquele encosto.
Ao quitar a dívida, foi obrigado a ouvir o discurso de agradecimento do gentil cavalheiro.
– Meu caro sinhô João Gabão, home bão e de palavra! Eu sabia que o sinhô num ia fartá cum meu cumpade! O sinhô é home zeloso, temente a Deus e cumpridô de seus devê. De maneiras que muito lhe admiro. Muito agradecido ao sinhô e à sua famía pela hospedage. De modos que é com pesar que lhes digo adeus. Nunca vô me esquecê desse tempo que aqui passei em tão boa companhia...

Apertou a mão do dono da casa, foi até o curral, arreou seu cavalo baio, prendeu na cabeça do arreio as alças dos embornais contendo a dinheirama, instalou-se na cela e aflorou docemente as esporas na pança do pangaré, para o arranque. A trote manso, repicado, foi-se pelas trilhas do sertão, “satisfeito” pelo dever cumprido.

Há poucos dias, divulgou-se na mídia uma nota que me remeteu à tática usada por Zé Bernardim. Segundo consta, atualmente, na Espanha, ou seja, em outro século e em outro continente, usa-se a mesma estratégia de cobrança, em que o constrangimento dá melhores resultados do que a intimidação. Baseando-se no princípio de que ninguém gosta de ser ridicularizado em público, surgiu, na Espanha, El Cobrador del Frac, firma especializada em cobrança de dívidas difíceis. 

Quando todos os meios legais se esgotam, entra em cena a figura mais temida pelos inadimplentes espanhóis. Inspirado na indumentária em preto e branco de Cervantes (autor de D. Quixote), o mais célebre arrecadador de impostos da Espanha, o cobrador se posta à porta da residência ou do trabalho do caloteiro, vestido de fraque, gravata-borboleta, cartola e uma maletinha de circo na qual se lê em letras brancas El Cobrador del Fraque. Parecido a um pinguim falante, o simpático cobrador distribui sorrisos e cartões aos vizinhos ou colegas de trabalho do devedor, declinando as particularidades da dívida do espertalhão. Educado, gentil e sempre sorridente, nunca desrespeita o código de conduta e nunca faz ameaças físicas a quem quer que seja.

A ideia deu tão certo, que já surgiram firmas concorrentes, como El Torero del Moroso [O Toureiro do Inadimplente], inspirado no El Monastério de Cobro [O Mosteiro da Cobrança]. O cobrador usa a mesma tática vestindo-se de monge, com um “modelito” do século XVIII.
Com a mesma eficácia do método Zé Bernardiniano, o pinguim e o toureiro dos dias atuais não arredam pé de seu posto enquanto não conseguem o que querem. Ao constrangimento, acrescenta-se paciência e persistência, tríade infalível junto aos maus pagadores.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)