segunda-feira, 4 de abril de 2016

INJÚRIAS LÍQUIDAS

*Jô Drumond 

João de Moura Brochado era uma figura singular, quase mítica. Loquaz, empenhava-se na utilização dos recursos e regras da retórica em terra de semianalfabetos. Elegante, envergava impecáveis ternos em terra de descamisados. Fino e cortês, exercitava a etiqueta no rude sertão mineiro. De comportamento bizarro, vivia em dissintonia com seu tempo e espaço.

Vista parcial da cidade de Coromandel, MG
Essa figura paradoxal e controversa exerceu o magistério durante algum tempo, na década de 1930, na escola rural do Serradão, próxima à fazenda de meu bisavô Manoel Caixeta, de onde minha mãe, ainda criança, saía quotidianamente a cavalo para aprender, com ele, cartilha e tabuada. Mais tarde, veio a ser um respeitado Mestre na pequena cidade de Coromandel (MG), também chamada naquela época de Rua, pelo fato de ter uma única via de tráfego. Foi aí que vivenciou o ocaso de sua vida, sem perder a postura nem a eloquência.

Sua verborragia ficou famosa em toda a redondeza. Dizem que, certo dia, as esfomeadas galinhas de um vizinho invadiram sua horta, estragando grande parte das verduras. Com aristocrática postura e magistral entonação, dirigiu-se ao proprietário das aves em tom reclamante: “Não é tanto pelo valor intrínseco do vegetal danificado, mas pela petulância dos bípedes que transpuseram as muralhas de meu domínio”.

Naquela época, a cidade de Coromandel ainda não era calçada. Apesar do pó vermelho, em tempos de seca, e da lama barrenta, em tempos chuvosos, De Moura envergava com frequência um impecável terno de linho branco, na única e poeirenta rua da “Rua”. Num pluvioso dia de verão, durante suas habituais andanças, apareceu todo enlameado. Questionado sobre o incidente, respondeu: “São as injúrias líquidas lançadas pelas rodas borrachinosas de um veículo em movimento”.

De outra feita, viu-se na obrigação de atravessar um rio sem ponte. A travessia era feita por um velho canoeiro que carregava sempre consigo um cachorrinho de estimação. Dirigiu-se ao ancião com sua linguagem peculiar:

- Bom dia, meu senhor. Quanto me cobra em pecúlio para trasladar-me de uma margem à outra?

Sem entender a pergunta, e, inferindo que o passageiro se referia a seu fiel companheiro, respondeu:

- O sô pode entrá, que meu cachorrim num morde não.

Toda a prolixidade de João de Moura, no entanto, foi insuficiente para justificar seu hilariante sobrenome diante da derrisão alheia. Era-lhe inútil frisar que o vocábulo “Brochado” estava diretamente relacionado às Letras e, por conseguinte, à sua profissão; que correspondia ao particípio do verbo brochar, no sentido de prover ou fechar com brocha (fecho). Exemplificava, dizendo que as estantes da biblioteca estavam repletas de brochuras, ou seja, de livros encadernados pelo sistema de brochagem. Malgrado a explanação etimológica, os entreolhares maliciosos provocados pela vocalização de seu sobrenome indiciavam que a acepção de impotência sexual prevalecia nas mentes profanas.

João de Moura Brochado já se foi, há tempos, para dimensões desconhecidas dos viventes onde, quem sabe, pode estar exercitando sua “prosoposéia”. Contudo, sua figura folclórica perdura em uma infinidade de “causos” a seu respeito. A saudade do grande Mestre e a nostalgia dos tempos idos permanecem ainda nos anciões coromandelenses; as bizarrias do acrônico e atópico letrado persistirão, de geração em geração, na memória popular.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGES)