terça-feira, 5 de julho de 2016

VIDAS FLUTUANTES

Jô Drumond

Na Amazônia, uma fração da comunidade manauara flutua em cais de devaneios, ancorada em sonhos de infinitude. Casas residenciais, postos de combustível, oficinas mecânicas, restaurantes, feiras de artesanato e barcos de toda sorte oscilam docemente, sob a inclemência abrasante do sol, sem ferir o espelho d’água.

Parte da população ribeirinha desconhece outro estilo de vida. Suas moradas, amarradas em troncos de árvores, flutuam sobre toras de madeira, ao sabor das cheias e das vazantes. Os moradores, presos a quase nada, mantêm os olhos sedentos de esperança nas lonjuras do horizonte aquoso, onde o sol se afoga a cada poente. No dia-a-dia, desfrutam a malemolência cotidiana sem se submeter aos ditames do relógio; sentem o roçagar da amena brisa local, em contraposição ao intenso calor da cidade de Manaus, às vezes insuportável aos turistas habituados a climas mais brandos.

Acabo de visitar esse universo aquoso, justamente nas cheias de julho, segundo dizem, a melhor época do ano para se deslizar selva adentro pelos meândricos igapós. Apesar da rápida convivência com os habitantes da ribeira, percebi que, malgrado as adversas condições de vida, eles dissipam a tristeza com o vento e se agarram à alegria de viver. Dei-me conta do bom humor contagiante, logo no primeiro contato com o timoneiro.

─Essa embarcação é segura? (perguntei-lhe)
─Claro que sim! (respondeu em tom de galhofa) Ela comporta 80 passageiros, mas está levando 200.

Nosso guia fluvial, de aspecto bonachão, gracejou sobre a ausência de problemas com relação à vizinhança da ribeira. Ao menor atrito, pode-se deslocar a casa de lugar. Mencionou a economia do cafezinho ali preparado com a água do rio Negro, portanto com menos pó. Gabou-se da ausência do IPTÁgua (corruptela de IPTU), e da segurança contra inundações, qualquer que seja o nível das águas.

Ao desembarcarmos no Parque Ecológico Janauary, fomos distribuídos em pequenos barcos para a incursão pela selva inundada. Pilotos-mirins, que deveriam estar distraindo sua meninice nos pátios escolares, eram os responsáveis pelo exótico passeio. Nossas vidas estavam nas mãos de um garoto de 13 anos, que enfrentava o barroquismo anárquico da floresta, brincando de se desviar dos troncos eretos, em águas repletas de piranhas. O barco se enveredava mata adentro, atropelando o silêncio das águas mansas, desbravando trilhas só conhecidas pelas sombras da selva. Nos lagos de vitória-régia1, onde havia congestionamento de barcos de turistas, o garoto deslocava a pequena embarcação com inimaginável destreza, sem colidir com nenhuma outra, e sem danificar as plantas aquáticas.

Durante a vagueação na selva, a cada instante deparávamos com uma surpresa: samaumeiras gigantes2, seringueiras, jacarés-açu3, tartarugas, pássaros, macacos, e o famoso boto cor-de-rosa4, capaz de se transformar num rapaz galanteador e sedutor. Segundo a lenda, ele deixa os rios, enfeitiça as garotas indefesas e volta às águas em forma de boto. Presume-se que tal crendice tenha sido inventada para remendar a honra de meninas púberes e adolescentes. Há quem acredite, na Amazônia, que, crianças oriundas do estupro, do incesto e do aliciamento sejam filhas do boto.

Os visitantes que se enveredam pelos igarapés e pelos igapós, em busca de emoções e de deslumbres, regozijam-se com as eventuais surpresas que a fauna e a flora lhes proporcionam: O turista mais sensível ao Belo, com olhar pesqueiro, busca em cada detalhe a indescritível poesia da vida. Ele se extasia diante da magnificência da flora e dos flamejantes reflexos na água, inebria-se com emanações aromáticas, e aquieta-se ao ouvir, pelas vozes da natureza, a canção do silêncio. A estesia, latente em seu âmago, emerge à flor da pele e, tal qual o poeta Baudelaire, embrenha-se numa floresta de símbolos, em que, ecos, sons e cores se mesclam formando um espaço sagrado.

“La nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers»

(do soneto “Correspondances” extraído de As Flores do mal)

Baudelaire vê a natureza como concordia discors (unidade de elementos discordantes). Um belíssimo exemplo dessa harmonia de elementos díspares acontece na própria formação do rio Amazonas, a 18 km de Manaus. Ele se origina do encontro de dois rios com densidade, correnteza, temperatura e cores diferentes. Um curso de águas negras e outro de águas barrentas seguem pari passu, sem se misturar, por mais de 10 km. Trata-se de um fenômeno único no globo terrestre. A formação do rio Amazonas5, no encontro dos rios Solimões e Negro, tombado pelo Iphan, é um dos mais belos espetáculos da natureza.

No magnífico universo hídrico da bacia Amazônica, a densa floresta desvela sua exuberância tropical. Os ribeirinhos, a mercê da transitoriedade das águas e das oscilações climáticas, vivem às margens do nada (que é tudo), compartilhando a dança cíclica do tempo, na antecâmara do infinito.

NOTAS:
Vitória-Régia1: planta aquática típica da Amazônia, cujas folhas planas e arredondadas chegam a 2,5 metros de diâmetro e podem suportar até 40 quilos, desde que o peso seja bem distribuído. A flor da Vitória-régia é solitária e aromática. Só se abre à noite, durante três dias, apresentando uma diferente coloração a cada dia.
Samaumeira2:Trata-se da maior árvore nativa das Américas, que pode atingir 70 metros de altura
Jacaré-açu3: O maior jacaré brasileiro, de corpo negro e cabeça marrom, que pode chegar a 6 metros de  comprimento.
Boto4: o boto é parecido com o golfinho, mas vive em água  doce, tem o bico mais comprido sobre o qual há pelos (vibrissas) com função tátil e direcional. Os golfinhos são acinzentados e vivem em bandos; os botos (pretos, cinzas ou cor-de-rosa) são animais solitários. Devido ao formato fálico do bico e talvez devido à sua solidão, criou-se a lenda do boto cor-de-rosa.
Rio Amazonas5: O encontro das águas foi tombado pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A proposta de tombamento foi baseada no “caráter de excepcionalidade do fenômeno e em seu alto valor paisagístico”. Tal ato provocou a suspensão imediata do licenciamento ambiental para a construção de um terminal portuário em área próxima, que poderia causar danos ambientais e sociais irreversíveis.

Segundo informações do guia turístico, os dois rios demoram a se misturar devido às diferenças abaixo:

Diferenças
Rio Negro
Rio Solimões
cor
Negra, devido à decomposição vegetal
Barrenta devido a desbarrancamentos
correnteza
2 a 3 km/h
6 a 8 km/h
temperatura
22º
28º
densidade
menor densidade
maior densidade

Encontro das águas do Rio Negro e Solimões
A bacia Amazônica, maior bacia hidrográfica do mundo, tem suas origens nos Andes, com o nome de rio Marañón. Percorre o território brasileiro com o nome de Solimões, agregando uma grande quantidade de afluentes, muitos dos quais navegáveis, até se encontrar com o rio negro. A partir de então se chama rio Amazonas.
  


*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Membro de 3 Academias de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL)e do Instituto Histórico (IHGE