segunda-feira, 26 de setembro de 2016

SINHÁ OLYMPIA E AS BRUMAS DE VILA RICA

* Jô Drumond

Dona Olympia fotografada com os filósofos
e escritores franceses, Sartre e Simone
de Beauvoir.
 Remonto ao início da década de 70, do século XX, período em que tive o privilégio de residir numa das mais encantadoras e envolventes cidades que conheci, elevada hoje a patrimônio histórico da humanidade. Deixei-me cativar pelo bruxuleio das brumas nos campanários, pelos fantasmas históricos que ainda povoam os tortuosos becos, pelos rangentes degraus das sombrias moradas, pelas pedras escorregadias das ladeiras, pelo nevoento lusco-fusco, pelo frio enriquecedor das invernadas, enfim, pela atmosfera singular impregnada de mistérios de antanho.


Naquela época, uma figura emblemática, atualmente engavetada sob alguma lápide barroca, perambulava pelos becos de Ouro Preto. Vívida na memória popular, como patrimônio folclórico ouro-pretano, Dona Olympia, ou Sinhá Olympia, presença festiva e colorida, enfeitava as ruelas da cidade, com longas saias rodadas, recheadas de anáguas engomadas, cores vivas, grandes chapéus floridos, rendas, colares, pulseiras, brincos e o inseparável batom carmim, para realçar a alvura de sua tez. 

         Habituada a uma vida pendular, vivia ora “aqui-agora”, ora na Corte lusitana, ou simultaneamente nas duas épocas. Louquejava pelas ladeiras suas histórias mirabolantes, fruto de sandice ou de esperteza – talvez de ambas ao mesmo tempo -, para subtrair alguns tostões dos turistas. Fazia-se fotografar ao lado deles - com a indumentária do Império - como descendente direta da antiga nobreza. Enfatizava suas origens, listando nomes de ilustres ancestrais; criava histórias ao sabor do momento. Destarte, angariava de turista em turista seu ganha-pão cotidiano.  Residia cerca de 50 metros da Matriz Nossa Senhora do Pilar, uma das mais requintadas igrejas do barroco brasileiro, cujo interior ostenta mais de quatrocentos anjos esculpidos em talhas de madeira cobertas por 400 quilos de outro e 400 quilos de prata.

Todas as manhãs, Dona Olympia escalava a íngreme rua da escadinha, apoiada num cajado enfeitado com flores, penas, broches, fotografias e tiras de papel colorido (seu cetro). Percorria a tortuosa rua São José e subia a rua Direita até a Praça Tiradentes, onde se situava a antiga rodoviária, seu  “point” preferido, local de grande afluência turística. Nos percursos de ida e volta,  fazia paradas estratégicas para descansar ou prosear com forasteiros. Depois de idosa, sem condições de flanar pelas ladeiras, postava-se no largo da Matriz do Pilar, a mais visitada pelos forasteiros.

Eu me comprazia a ouvir seus “causos”. Às vezes, matava o tempo ao seu lado, embarcando em seus devaneios de nobreza. A garbosa anciã, sem se desviar do intento monetário, não se esquecia de cobrar pelo entretenimento que sua presença me propiciava, ao que eu retrucava:

 – Mas, Dona Olympia, eu não sou turista!

Ela voltava então a seu reino encantado, rodeada por curiosa plateia itinerante. Ao perceber minha permanência no local, retomava o objetivo proposto.

– Moça, só mil cruzeiros, por uma foto ao meu lado!

Segundo seus biógrafos, foi uma jovem de rara beleza. Estudou no Colégio das freiras Vicentinas, em Mariana. Falava latim, gostava de ler, escrever poesias e tocar piano. Foi professora até cerca de 22 anos de idade. Não se sabe ao certo o que desencadeou a sandice, aos 29 anos.

A singularidade dessa figura acabou levando sua fama muito além das fronteiras. Chegou a ser capa da revista Times e participou de programa televisivo. Foi retratada por pintores, fotógrafos e compositores. Teve contatos com celebridades políticas e artísticas, como Juscelino Kubitscheck, Tancredo Neves, Sartre, Simone de Beauvoir, Vinícius de Moraes, entre outros. Foi musa inspiradora do poeta Carlos Drummond de Andrade e do compositor Milton Nascimento. Foi tema de samba enredo da Mangueira, na década de 90. Em 1975, criou-se, em Ouro Preto, a Escola de Samba Sinhá Olympia, que sempre aborda  temas relacionados à história e à cultura ouro-pretanas.

Sinhá Olympia recebia chapéus, medalhas e diversos presentes de várias partes do mundo. Nunca perdia o hábito da desnecessária mendicância. Os proventos da célebre esmoler eram divididos com os menos favorecidos.

Dona Olympia pelas ruas de Ouro Preto
Os moleques de rua se divertiam com sua reação ao ser chamada de “homem” (devido à voz grave). Para provar sua feminilidade, levantava as saias rodadas, sob as quais não nada usava.

Não é fácil delimitar os lindes entre lucidez e loucura em uma mente nebulosa. Mais difícil ainda, quando se cria um alter ego com o qual se deve atuar para sobreviver. Os dois perfis, por vezes, se mesclam. Nunca terei ciência do grau de matreirice e de insanidade que coabitavam naquela cabeça adornada de bizarros chapéus. Dona Olympia viveu suas vidas e se foi, levando consigo um lampejo do Império. 

No entanto, ela permanece incólume na memória da cidade. Ouro Preto, a antiga Vila Rica das minas, hoje sem ouro, continua sob a vigilância do Pico Itacolomi, embalada pelos sonhos dos Inconfidentes, pelos recônditos tesouros de outras eras, pela esperança de reaver a cabeça de Tiradentes - desaparecida do pedestal na calada da noite - e pelas quimeras do escravo Chico Rei sem reino. 

Nas fantasmagóricas noites ouro-pretanas, há quem ouça, ainda hoje, o arrasto das correntes e a plangência de seus súditos que, marcados a ferro e fogo, banharam de suor as minas e de sangue o pelourinho. Dona Olympia era o outro lado da moeda: a face da nobreza, da beleza, da alegria, do glamour e dos sonhos de tempos idos. A exímia contadora de histórias Olympia Angélica de Almeida Cotta (1889/1990) viveu a realidade do século XX, mas soube viver, oniricamente, todo o esplendor dos séculos XVIII e XIX.

*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias

de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)