domingo, 6 de novembro de 2016

O PADRE ATEU

*Jô Drumond


Nunca havia imaginado a possibilidade de existir um padre ateu, avesso a qualquer tipo de religião e, sobretudo, inimigo ferrenho do catolicismo. Tal antagonismo me incitou a obter maiores detalhes sobre a vida e a obra de um pároco aparentemente tão contraditório. Há um ditado popular, segundo o qual “para tudo neste mundo, há uma explicação”. Decidi buscar tal explicação, que muito me surpreendeu. É difícil acreditar que a grande guinada das concepções religiosas do século XVIII, chamado “O século da razão”, tenha sido provocada justamente por um virtuoso padre. Segue uma síntese do que foi pesquisado a respeito desse fato, a quem interessa possa.

Antes do século XVIII havia muito respeito com relação ao cristianismo e aos eclesiásticos. Ao longo desse século, as concepções dos descrentes, céticos e ateus, antes ocultadas e despercebidas, tornaram-se, aos poucos, públicas e notórias. Por isso as concepções filosóficas de Padre Meslier (1678/1733) só emergiram algum tempo após sua morte.

Jean Meslier, vigário durante mais de quarenta anos da igreja de um vilarejo chamado Étrépigny, no norte da França (região de Champagne-Ardennes), teve uma história de vida antagônica. Suas ações eram absolutamente incompatíveis com seus pensamentos.

Certa vez ele recriminou o homem mais poderoso do povoado, Sr. Touilly, por  ter maltratado camponeses. Sentindo-se ofendido, Touilly deu queixa à autoridade competente, o Arcebispo de Reims, que repreendeu veementemente o padre. Este, sentindo-se injustiçado por ter dito a verdade, “botou a boca no trombone”, no sermão do domingo seguinte, diante dos fiéis:

Eis aqui a sorte costumeira dos pobres párocos do interior; os Arcebispos, que são os grandes Senhores, os desprezam  e não os escutam. Recomendemos portanto o Senhor deste lugar. Oremos a Deus para Antoine de Touilly: que Ele o converta e lhe dê a graça de não maltratar o pobre e de não despojar o órfão.

Voici le sort ordinaire des pauvres Curés de Campagne ; les Archevêques, qui sont de grands Seigneurs, les méprisent & ne les écoutent pas. Recommandons donc le Seigneur de ce lieu. Nous prierons Dieu pour Antoine de Touilly ; qu'il le convertisse & lui fasse la grâce de ne point maltraiter le pauvre, & dépouiller l'orphelin.

Estando presente na pregação, Touilly sentiu-se novamente incomodado e voltou a dar queixa ao Arcebispo, que, desta vez, ordenou que o padre se apresentasse pessoalmente diante de si, para as devidas repreensões e ameaças. Desde então, Meslier silenciou e foi mantido, até o fim de seus dias, no mesmo lugarejo, sem nenhuma promoção, sem nenhum benefício. Desgostoso da subordinação clerical, ele poderia ter-se desligado da Igreja, mas não o fez. 

Sabe-se que até meados do século XX, os longos estudos nos seminários não habilitavam os aspirantes a nenhuma função, a não ser o sacerdócio. Com o intuito de evitar a evasão do clero, a Igreja e o Estado tinham um acordo tácito, para que os seminaristas não tivessem diplomas estatais. Assim, não eram habilitados para nenhum trabalho fora do que lhes era proposto. Se Meslier abandonasse a Igreja, perderia a oportunidade de ajudar seus paroquianos, não teria o que fazer, quiçá nem meio de subsistência. Descrente do texto bíblico desde o início, ele se deu conta de que a única maneira de ajudar seu povo seria justamente manter o cargo e distribuir a arrecadação obtida com os mais necessitados.

Meslier se indignava pelo fato de a Igreja proteger os parasitas que oprimiam e exploravam o povo: soldados, eclesiásticos, juristas, e a nobreza. O rei (que para ele não tinha poder divino, como se acreditava na época), em conluio com o clero, dominava toda a tirania. Abaixo o rei! Os homens deveriam viver sem opressões político-religiosas. Há uma frase muito contundente e extremamente revolucionária de Meslier, muito citada por seus estudiosos:

Eu queria, e esse seria o último de meus desejos, eu queria que o último dos reis fosse estrangulado com as tripas do último padre.

Je voudrais, et ce serait le dernier de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.

O santo homem consagrou seus dias a ajudar o próximo. O desvelo e a dedicação para com os paroquianos o teriam conduzido a uma possível beatificação ou canonização, não fosse a herança deixada intencionalmente a seu rebanho, que reverteu seu status de “bendito” para “maldito”. Ao morrer, além de deixar seus parcos pertences para os pobres, deixou também, registrado em cartório, algo que estarreceu toda a gente: um testamento filosófico manuscrito dedicado a seus paroquianos, contendo trezentos e sessenta e seis páginas, recopiado manualmente duas vezes. Destarte, deixou 3 exemplares para expressar sua última vontade: a de desvelar um segredo que o violentava cotidianamente, guardado a duras penas por mais de quatro décadas. 

Advertiu, por escrito, dois amigos seus, Voiri (vigário de Guignicourt) e Delavaux (vigário de Boulzicourt) que um dos três exemplares tinha sido entregue ao Cartório de Mézières, e mencionou a possibilidade de darem sumiço em tal texto, devido ao “mau hábito (do poder estabelecido) de impedir que as pessoas humildes se instruam e busquem a verdade”. O manuscrito depositado em cartório, embrulhado num grosso papel cinza, à guisa de envelope, foi endereçado ao Sr. Roux, Procurador e Advogado Oficial de Mézières. Do outro lado do pacote, ele deixou a seguinte mensagem:

Eu vi e reconheci os erros, abusos, vaidades, loucuras e maldades dos homens; eu os odiei e os detestei ; eu não ousei dizer durante minha vida, mas direi pelo menos ao morrer e após minha morte; e é para que o saibam, que eu fiz e escrevi o presente Memorial para que ele possa servir de testemunha de verdade a todos os que o verão e que o lerão, se lhes aprouver.

J'ai vu & reconnu les erreurs, les abus, les vanités, les folies & les méchancetés des hommes ; je les ai haïs & détestés, je ne l'ai osé dire pendant ma vie, mais je le dirai au moins en mourant & après ma mort ; & c'est afin qu'on le sache, que je fais & écris le présent Mémoire, afin qu'il puisse servir de témoignage de vérité à tous ceux qui le verrons & qui le liront si bon leur semble.

Ainda jovem, aos 55 anos de idade, Meslier morreu por inanição, de forma lenta, natural e intencional. Seus biógrafos não mencionam “suicídio”, termo muito forte em se tratando de um representante da Igreja. Dizem apenas que, desgostoso da vida, ele passou a recusar os alimentos necessários à sobrevivência; não bebia nem mesmo uma taça de vinho (o que é de se estranhar, em se tratando de um francês).

O conteúdo do manuscrito poderia ter passado despercebido se não tivesse caído nas mãos de quem pudesse se interessar por ele. Não por acaso, os enciclopedistas tomaram conhecimento do texto. Informado da existência do manuscrito, o filósofo iluminista francês Voltaire se interessou por ele e, 33 anos após a morte de Meslier, fez uma publicação expondo, por meio de excertos, os sentimentos, os pensamentos e as convicções do padre ateu e anticlerical. Como Voltaire era deísta, incluiu algumas atenuantes que, de certa forma, amputaram ou desvirtuaram parte importante da mensagem. Depois de Voltaire, outros estudiosos se debruçaram sobre o Testamento de Meslier, e possibilitaram a divulgação de suas reflexões, seus “sentimentos e pensamentos”, como ele próprio havia intitulado. O longo título, bem abrangente, apresenta uma síntese do que está por vir: 

Memorial dos pensamentos e sentimentos de Jean Meslier, cura de Étrépigny e de Balaives, sobre uma parte dos erros e dos abusos da conduta e do governo dos homens, onde se veem demonstrações claras e evidentes da vaidade e da falsidade de todas as divindades e de todas as religiões do mundo, para ser endereçado a seus paroquianos após sua morte, e para lhes servir de testemunho de verdade, para eles e para todos os seus semelhantes.

Mémoire des pensées et des sentiments de Jean Meslier, curé d’Étrépigny et de Balaives, sur une partie d’erreurs et des abus de la conduite et du gouvernement des hommes où l’on voit des démonstrations claires et évidentes de la vanité et de la fausseté de toutes les divinités et de toutes les réligions du monde, pour être adressé à ses paroissiens après sa mort, et pour leur servir de témoignage de vérité, à eux et à tous leurs semblables.

Numa carta inicial, à guisa de prefácio, ele prepara o espírito do leitor para a revelação de sua verdade. A seu ver, todas as religiões são invenções humanas calcadas na mentira, na ilusão e na impostura. Em tom peremptório, incita os fiéis a abandonar a religião.

Justifica o fato de ter abraçado uma profissão diretamente oposta às suas concepções e esclarece que teria dito tudo em vida, se tivesse podido fazê-lo. Afirma ter sempre desprezado aqueles que se aproveitavam da simplicidade e da cegueira do povo, aqueles que recebiam somas consideráveis na compra de preces; os mesmos que engordavam à custa do suor e da labuta do povo. Fala de seu sofrimento, sendo forçado à pregação de piedosas mentiras que tanto detestava. Afirma ter evitado o máximo possível, dentro de suas funções, mencionar os odiados dogmas. Desprezava seu ministério, particularmente a “supersticiosa missa” e as “ridículas administrações de sacramentos”, sobretudo os que exigiam solenidade para atrair a piedade e a boa-fé de todos. 

Quanto remorso ele demonstra ter carregado devido à credulidade dos fieis! Padre Meslier se penitenciava por ter que passar aos paroquianos concepções que não eram suas e que deveriam ser combatidas. Não acreditava no Deus cristão, nem na imortalidade da alma. A seu ver, os Evangelhos eram repletos de baboseiras e contradições; os milagres eram fraudes; a dita “Divina Providência” era perversa; Jesus teria sido apenas um fanático, que dava conselhos contrários à natureza humana, tais como aspirar à pobreza, recusar os prazeres e se resignar aos sofrimentos.

Termina a nota explicativa dizendo que esteve mil vezes a ponto abrir os olhos dos paroquianos, mas um temor superior às suas forças o conteve e o manteve em silêncio até à morte.


Sua filosofia se alastrou mundo afora de maneira extraordinária. Seu texto é considerado fundador do ateísmo e do anticlericalismo militante na França. Meslier pode ser considerado precursor do Iluminismo francês, da Revolução Francesa, da mudança de concepções religiosas, do Socialismo, do Anarquismo e de outras tantas tendências oriundas do Racionalismo.



*Jô Drumond (Josina Nunes Drumond) Membro de 3 Academias
de Letras (AFEMIL, AEL, AFESL) e do Instituto Histórico (IHGES)