sexta-feira, 15 de março de 2013

SALVO PELA RETÓRICA

(Conto baseado em fato real)                                                                                                                        *Jô Drumond
Um mendigo perambulava pelas ruas de uma cidade interiorana do Estado do Espírito Santo, sem teto, sem pão e sem destino. Vivia da caridade alheia, cada vez mais rara nos tempos atuais. Abordado por ele, Pedro, um professor de literatura, com tempo disponível para um dedo de prosa, estranhou o eloquente linguajar do mendigo, com vocabulário requintado e português castiço. Perguntou-lhe o que fazia, antes da mendicância. O maltrapilho não se lembrava. Perguntou-lhe também sobre sua família. Ele tampouco se lembrava. Todavia algumas leituras feitas não haviam caído no esquecimento. Citava personagens e relatava trechos de grandes clássicos da Literatura universal.
Se fosse um pedinte comum, o professor poderia achar que ele estivesse omitindo informações pessoais por motivos torpes. Talvez fosse um criminoso foragido tentando se esconder no anonimato. Mas aquele homem esguio, de porte aristocrático e linguagem escorreita, embora roto e faminto, não poderia ser um foragido, muito menos um bandido. Devia ter tido berço e educação formal. Movido pela curiosidade, Pedro tentou obter dados que pudessem identificá-lo, mas o mendicante não recordava nem mesmo o próprio nome. Ele poderia estar mentindo, mas poderia também estar com amnésia, talvez com o mal de Alzheimer. O professor voltou para casa encabulado. No dia seguinte, antes de ir para o trabalho, procurou pelo pedinte, na praça da matriz, local ideal para a abordagem dos devotos, que porventura lhe davam alguns trocados.
Conversa vai, conversa vem, Pedro soube a razão do apelido escolhido pelo próprio mendigo.
─ Como não me lembro de meu nome, escolhi Ulisses porque estou sempre em busca de minha Ítaca. Quem sabe há alguma Penélope à minha espera?
─ Você já leu a Odisséia? ─ perguntou-lhe o professor.
─Já li e reli Ilíada e Odisseia de Virgílio, Eneida, de Homero, a Divina Comédia... aliás, minha vida se enquadra no primeiro volume da trilogia, intitulado por Dante de, O inferno. Só não fiz minha travessia para o outro mundo porque ainda não encontrei a barca de Caronte.
─ Você diz não se lembrar de nada, mas se lembra de autores, títulos e personagens!
─ Às vezes, leituras antigas emergem em minha memória, por algum tempo, e submergem no reino de Hades.
─ Se você quiser, posso lhe emprestar alguns livros.
─ Você faria isso? Ficar-lhe-ia imensamente grato. Tenho todo o tempo do mundo para “viajar” na literatura.
Desde então, Pedro não conseguia pensar em outra coisa. Como deixar aquele ancião exposto às intempéries, alimentando-se de restos e migalhas? Como ajudá-lo? Seu salário de professor mal supria às despesas mensais da família. No colégio onde trabalhava, andou comentando o fato com alguns alunos. Um deles, internauta assíduo das redes sociais, se prontificou a desvendar tal mistério. Pediu ao Professor que o levasse até o mendigo. Discretamente, simulando o uso do i-phone para telefonar, tirou diversas fotos, às escondidas, postou-as na internet acompanhadas, de um pequeno texto explicativo. O retorno foi imediato. Uma família do interior do Estado de São Paulo reconheceu Bartolomeu, desaparecido há alguns meses. Sua mente tinha realmente sido tomada pelo mal de Alzheimer. Carregava na memória muita sombra e poucas luzes. Às vezes reconhecia parentes próximos, ao sabor dos lampejos fugidios de uma mente combalida.
Sua família se encarregou prontamente do regate. Todos queriam saber como ele havia se deslocado para tão distantes paragens. Ele não reconheceu ninguém, tampouco matou a curiosidade dos que vieram ao seu encalço. Os familiares, de sobreaviso, temendo a recusa do retorno ao lar, viajaram munidos de fotos recentes, de álbuns antigos e de documentos comprobatórios de identidade. Meio desconfiado, sem se dar o direito à contestação, lá se foi Ulisses, com um pé atrás, acompanhado por uma deplorável Penélope, sem charme algum, mas com alguns tênues traços de antiga belezura. Acompanharam-no também dois rapazes que se diziam seus filhos, mas que ele acabara de conhecer.
Deixou-se levar, silenciosamente, sem alegria nem tristeza, porém apreensivo com o que encontraria pela frente.
─ Como será minha verdadeira Ítaca? – perguntava a seus botões -. A considerar pela decadência de Penélope, o “lar, doce lar” deve estar bem aquém de meus anseios!  Aedos de Ítaca, acalentai-me!

*Jô Drumond é  membro da: 
AEL (Academia Espírito-santense de Letras).
AFESL (Academia Feminina Espírito-santense de Letras)
AFEMIL (Academia Feminina Mineira de Letras)
IHGES (Instituto Histórico e Geográfico do ES).