domingo, 18 de março de 2018

“BURROCRACIA”

Se se pode complicar, pra que simplificar?” Esse ditado, às avessas, adapta-se a algumas circunstâncias que beiram a irrisão, no que se refere à burocracia.

JÔ DRUMOND 
O inventário de meu padrinho arrasta-se por mais de uma década: exaustivas idas e vindas a cartórios e Fóruns, trocas de advogados, agrimensuras desencontradas, desavenças na demarcação de divisas, demandas de novas documentações... A cada dia surgem novas exigências. O processo continuará emperrado até não se sabe quando. Uma extravagância hílare exigida, é a anual “prova de morte”, ou seja, a atualização do Atestado de Óbito, como se o morto pudesse renascer das cinzas, tal qual Fênix.


O mito de Fênix remete-me a uma circunstância inusitada. Certo dia, meu marido me enviou uma mensagem, de seu local de trabalho, dizendo que me havia deixado um presente, sobre a escrivaninha. Estranhei o fato de ser presenteada fora de data comemorativa. O estranhamento aumentou, quando percebi que se tratava de um simples envelope tamanho ofício. Assim que o abri a surpresa se multiplicou.  Tratava-se nada menos que um contrato de prestação de serviços de cremação entre mim e o Parque da Paz. Minha primeira impressão foi a de que ele desejava minha morte. 
Depois, ao ouvir sua justificação, louvei a iniciativa. Ele havia feito também um contrato em seu nome, no intuito de simplificar a vida da família, na hora do adeus. Resolvi ler o teor integral do texto. A alínea 1.3 da cláusula nº 1, “Dos serviços”, me provocou boa gargalhada: “Os serviços serão prestados uma única vez e somente depois de pago o seu preço na pessoa do próprio contratante ou na de quem ele expressamente determinar”. Certamente quem redigiu tal disparate acreditava também no “renascer das cinzas”, de Fênix.

Continuando a temática macabra, remeto-me ao falecimento de meu pai, na década de 80, no interior de Minas. Foi-nos solicitado seu título de eleitor, para que o corpo fosse liberado. Era impossível localizar tal documento. Seu título não tinha mais razão de existir. O voto deixa de ser obrigatório após os sessenta anos. Meu pai, já centenário, não votava havia mais de quarenta. Um de meus irmãos empenhou-se na busca do documento, em vão. Percebendo a inutilidade do intento e a urgência do enterro, procurou o necrotério uma vez mais, justificou o desaparecimento do título de eleitor e solicitou a liberação do corpo. Mediante resposta negativa, num ímpeto de indignação, disse-lhes que ficassem com o corpo e que fizessem dele bom proveito. Na saída do hospital, foi interceptado por alguém que se prontificava a lhe entregar o “pacote” indesejado.

Sabe-se que para o efetivo funcionamento de uma sociedade, é mister uma estrutura organizada, composta de regras e procedimentos preestabelecidos. Porém a conhecida morosidade do sistema burocrático descamba para uma definição pejorativa de lentidão ou de atraso de vida.

Lamentavelmente, como se vê, não satisfeita em nos perseguir vida afora, a burocracia dá o ar de sua graça também na hora da partida, como no caso de meu pai, assim como após, na “desvida”, como no caso de meu padrinho.